Foram necessárias 21 mortes de trabalhadores inocentes para que a comunidade de Vigário Geral ultrapassasse a linha do trem e se fizesse presente para a sociedade, o Estado e o mundo. Depois do dia 29 de agosto de 1993, a favela nunca mais seria a mesma tanto para os moradores quanto para a sociedade do asfalto. A crueldade das mortes marcaria para sempre aquele lugar, que mais parece um gueto cercado pela linha do trem e por Parada de Lucas.
A chacina está marcada principalmente na memória dos 13.000 habitantes que a presenciaram. Familiares, amigos e conhecidos das vítimas se recordam do acontecimento como se tivesse ocorrido há poucas semanas, mas poucos são os que ousam falar. O medo da repressão, a desconfiança do olhar e a distância para com o visitante são presenças constantes em Vigário Geral.
Valdir Baiense, morador há 33 anos da favela e um dos poucos que ainda falam do assunto, percebeu a entrada brusca dos policiais e permaneceu junto à família em casa. Só não sabia que seu filho Amarildo, de 31 anos, ainda estava a caminho de casa. “Estava na cozinha quando ouvi os passos pesados, característicos da PM. Avisei ao meu filho mais novo que não saísse de casa. Não esperava que o mais velho estivesse na rua, batendo de cara com os monstros”. Amarildo foi um dos últimos a serem mortos pelo grupo conhecido como Cavalos Corredores, formado no 9º Batalhão da Polícia Militar (Rocha Miranda), na época em que o coronel Emir Laranjeiras era o comandante responsável pela área.
No dia 30 de agosto de 1993, todo efetivo da Polícia Militar estava revoltado com a morte de quatro oficiais nas proximidades da favela de Vigário Geral. As mortes supostamente seriam resultado da ousadia dos traficantes, chefiados por Flávio Negão na época. Um grupo de cerca de 50 policiais resolveu então vingar as mortes dos colegas invadindo a comunidade e matando friamente 21 pessoas, das quais oito de uma mesma família de evangélicos. Destes, não havia nenhum envolvido com a bandidagem.
Na casa de nº 13 da rua Antônio Mendes, onde moravam os evangélicos, cujo único pecado do pai da família foi olhar na janela para ver o que estava acontecendo, tinham cinco crianças que conseguiram fugir para a casa da vizinha enquanto os criminosos decidiam os seus destinos. Morando em Bonsucesso, hoje a favela não traz nenhuma saudade e a chacina é assunto esquecido e proibido. Da casa a única coisa boa que ficou foi a transformação em um centro cultural que destinava-se a defender os direitos humanos dos moradores. E não existia nome melhor do que Casa da Paz.
Atualmente, a Casa é gerenciada pelo projeto Reciclagem e Cultura, da organização não governamental Onda Azul. Mas, vez em quando as atividades são interrompidas por falta de repasse de verbas dos patrocionadores. A instituição já ficou até dois anos fechada com a saída do Viva Rio e do seu idealizador Caio Ferraz, o sociólogo nascido e criado na comunidade.
Caio Ferraz recusa-se a dar declarações sobre o assunto, mas segundo amigos ele teria deixado a comunidade após ameaças de morte feitas por pessoas envolvidas com a chacina e que estavam sendo incomodadas com as suas insistentes declarações. Com receio de uma repressão, Caio solicitou asilo político ao governo americano e lá se encontra até hoje com a sua família.
Além do projeto Reciclagem e Cultura, a comunidade de Vigário Geral conta hoje com o AfroReggae, o Mogec (Movimento Organizado de Gestão Comunitária) e a Associação de Moradores do Parque Proletário de Vigário Geral (como a favela é reconhecida em órgãos públicos). Todos estes movimentos junto à antiga administração da Casa da Paz foram fundamentais para o recuperação da comunidade por tentar mostrar aos moradores que eles tinham direitos e que estes deveriam ser respeitados.
Mas nada foi capaz de mudar a relação da comunidade com a polícia. Esta relação possui a marca expressiva do medo. A incerteza quanto ao que vai acontecer quando esta entidade governamental entra na favela é visível no olhar das pessoas. Segundo moradores, não há respeito dos policiais com a população. “Eles acham que todo mundo é bandido e acabou”, conta uma jovem que já acordou com policiais fardados dentro de sua casa sem nenhum mandato que permitisse este tipo de ação.
Com atitudes arbitrárias, a Polícia Militar do Rio de Janeiro acumula ódio das pessoas que poderiam apoiá-los caso houvesse outro tipo de tratamento. Não é a toa que bandidos como Flávio Negão são adorados e lembrados com saudosismo por moradores revoltados com a atual situação. “Ele era uma pessoa muito boa para a gente. Pena ter morrido tão cedo”, diz a mesma jovem citada acima que preferiu não se identificar.
A relação com a favela Parada de Lucas, que mais parece uma continuação de Vigário Geral, também nunca foi fácil. De facções diferentes, a primeira pertence ao Terceiro Comando e a segunda ao Comando Vermelho, as duas estão sempre travando batalhas pelo domínio da venda de drogas na região. Na época da chacina, os traficantes de Parada de Lucas chegaram a ser acusados de serem autores da chacina, mas a hipótese logo foi descartada. Além disso os dois grupos selaram uma acordo de paz e houve uma período de trégua, chegando a ser realizado um baile funk que reuniu as duas comunidades pela primeira vez. Hoje, embora as duas associações de moradores tenham relações cordiais, as duas comunidades continuam vítimas de uma guerra que parece não ter fim.
Vigário Geral também teve mudanças em sua estrutura e no espaço físico. Os 200 mil metros quadrados da época da chacina aumentaram com a chegada de novas pessoas que aproveitaram a desvalorização imobiliária com a saída de moradores temerosos de novos massacres. Algumas ruas de terra batida que fervilhavam de calor foram substituídas pelo asfalto que chegou junto com o Favela Bairro, programa (ainda inacabado) da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. O saneamento básico e o serviço de iluminação pública, precários há 10 anos, foram melhorados e a população já conta com canalização ampliada e iluminação digna. A creche Coração de Gênesi, fechada até 1993, foi reaberta e já existe outra construída, pronta para ser inaugurada.
Em contrapartida, o atraso encontrado em todas as comunidades carentes do Rio de Janeiro também está presente em Vigário Geral. Sendo uma das mais pobres favelas da cidade, a comunidade só pode contar com o Ciep Mestre Cartola, que divide com Parada de Lucas, para a educação. Embora a maioria das casas seje de alvenaria, ainda existem barracos de madeira que com uma chuva mais forte podem desmoronar. Sem falar no alto nível de violência que os moradores são obrigados a conviver.
Contudo, os moradores tem um enorme carinho pela favela. Defendem pessoas que estão sempre ajudando a comunidade, sejam autoridades políticas ou pessoas ligadas ao crime organizado, e reconhecem o progresso ocorrido após a chacina. “Mesmo com todos os problemas eu quero morar aqui até morrer. Se eu sair daqui perco a minha identidade. Quem eu serei lá fora?”, disse Luzineide, tesoureira da associação de moradores.
No próximo dia 29 de agosto será comemorado o Dia de Luta contra a Violência, projeto aprovado pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Neste dia deve ser lembrado que existem acusados que não foram julgados, acusados absolvidos e acusados que fugiram da cadeia. Deve ser lembrado ainda que os familiares das vítimas não receberam a indenização que lhes é de direito e que nada mudou em relação ao caos causado pela violência na cidade do Rio. Que este dia torne-se uma marco, assim como a chacina de Vigário Geral ocorrida há dez anos atrás se tornou.
Camilla Antunes de Souza